quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Inatividade Desastrosa

A cena é típica: judeus esqueléticos de semblante cadavérico e fisionomia doentia, amontoados num cubículo escuro. A crueldade do holocausto é bem conhecida através de superproduções cinematográficas, documentários e livros. Pode-se inclusive perceber que já não causa mais tanto espanto e horror. Mas a perplexidade diante do reconhecimento das proporções as quais podem atingir a maldade humana ainda se faz presente, mesmo que de maneira menos acentuada.

Após a Segunda Guerra Mundial, para explicar esse fenômeno foi necessário revisitar as concepções do mal até então conhecidas. Nesse momento, ganha destaque o conceito de mal radical proposto por Kant, muito antes da 2ª Grande Guerra e que, quando foi apresentada sofreu diversas críticas. Porém, mais tarde, muitos apontaram esse seu conceito como uma “profecia” dos eventos que o mundo ainda estava por assistir. Para Kant, o homem tem uma propensão inata para o mal e o bem decorre da livre determinação da razão. Quando se abandona essa liberdade, o homem se inclina para o mal na busca de sua satisfação imediata.
Hannah Arendt, por sua vez, na tentativa de compreender as práticas nazistas, retoma o mal radical de Kant e lhe dá uma dimensão mais abrangente já que discorda que seja ele uma "vontade pervertida que poderia ser explicada por motivos compreensíveis." Para ela, o fenômeno totalitário só pode ser explicado de acordo com o processo pelo qual os homens se tornaram “supérfluos”, meros instrumentos destes regimes incapacitados de pensar. Foi essa incapacidade que impossibilitou o movimento de se colocar no lugar do outro, gerando a inércia da população diante das atrocidades cometidas. Constrói-se a percepção da banalidade do mal.

Hoje, já não mais existem campos de extermínio. Nos meios intelectuais impera um discurso de respeito ao próximo e suas diferenças. A eliminação de vidas através de uma atuação positiva do Estado é valorada negativamente e, mesmo em situações de conflitos internacionais, tal atitude é vista com reservas. Porém, a capacidade do homem de se preocupar efetivamente com o próximo na vida cotidiana vem se mostrando cada dia mais fraca. Embora ainda seja mascarada por algumas atividades assistencialistas, que o homem comum delas se utiliza como alívio para própria consciência.

Contudo, a habilidade para ver a humanidade como um todo e se sentir responsável por pelo menos uma parcela considerável deve ser questionada. No Brasil, para nos atermos apenas a um exemplo mais próximo, a alienação perante os problemas sociais é observada no ínfimo envolvimento político da maioria esmagadora da população. É um círculo vicioso no qual a classe média se preocupa primeiramente em obter seu lugar ao sol, os mais ricos em manter a posição dominante e os menos favorecidos em sobreviver. De modo que o que não atinge diretamente o indivíduo, não merece ser alvo da sua atenção. Os idealistas, mais do que nunca, são vistos como seres iludidos pela perspectiva de que podem ajudar a atenuar de maneira significativa os problemas sociais, mesmo que seja em apenas um ramo de seus desdobramentos.

O afastamento da realidade que vai além dos próprios interesses provoca uma inércia geral que, guardadas as devidas proporções (que não são tão diferentes assim!), em muito se assemelha à população alemã durante a 2ª Grande Guerra. As milhares de pessoas que morrem todos os anos vítimas de violência urbana, falta de atendimento médico e fome chegam a números alarmantes, mas que nem de perto desperta a perplexidade e a aversão que os campos de concentração causaram no pós-guerra.

Seria possível então afirmar que as mazelas da sociedade brasileira, mais do que representações do mal, são repercussões de um mal maior (ou mal radical como compreendido por Hannah Arendt) existentes nas presentes gerações que são capazes elaborar inovações tecnológicas surpreendentes e impossibilitadas de ver no outro algo além de obstáculos ou instrumentos para o alcance de seus objetivos individuais.

De minha parte, continuo esperando que a limitada classe de idealistas consiga inspirar nos demais a necessidade de se questionar a situação atual da humanidade nos seus vários aspectos a fim de buscar benefícios que fujam da esfera meramente individual.

2 comentários:

  1. Bom, o texto certamente inspira pensamentos. Em principio, tenho um ponto especifico a levantar. Apos a 2a Guerra Mundial, houve um debate meio que "ignorado" pela comunidade judaica, mas que partiu, em parte, justamente de Harendt e suas conclusoes sobre o ocorrido.

    Uma serie de genocidios ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial (sem contar em antes), nos quais os judeus nao se involveram. Entre o genocidio ocorrido na antiga Yugoslavia (que durou praticamente 50 anos), e outros genocidios renomados (como o de Rwanda), houve o debate da necessidade dos judeus, como testemunhas das atrocidades de genocidios, participarem de resolucoes contra os mesmos. A maioria destes, porem, se recusou a dar um unico pio. O motivo? Cada qual se preocupa com o seu, e nem na Africa, nem na Europa, houve realmente algum pais que defendesse os judeus do imperio nazista ate que fosse tarde demais.

    Novamente, no que diz respeito aos "idealistas", este eh o grande problema. Primeiro, porque o ultimo verdadeiro genocidio ocorreu ha pouquissimo tempo, mais especificamente entre 2005 e 2007, em Darfur. Poucos falaram sobre esse genocidio, e a midia pouco reportou o que ocorria. Como nao se tratou da Europa, NOS MESMOS ignoramos o que ocorria. Ou seja, ponto pra Harendt (e Kant, claro).

    Mas entre idealistas e absolutistas a diferenca eh so para que lado o pendulo se esquiva ao extremo. Enquanto idealistas percebem a possibilidade da mudanca (em alguns casos, dependendo, ate afirmam que a natureza humana eh positiva, e nao o contrario), absolutistas percebem a natureza contrapondo qualquer tentativa concreta de mudanca. Ambos sao deterministas (em grande parte).

    Nao sei se estamos fadados a mais do mesmo. Cada qual que faca sua parte, eh meu conselho.

    abraxao!

    RF

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  2. Será que o "mal", objeto da reflexão filosófica, é o motor propulsor do individualismo e do egoísmo? Ou o individualismo e o egoísmo serve de estímulo para este "mal"?
    Estamos diante de um círculo vicioso e não existe força para quebrá-lo? Mudanças são sempre necessárias, pois as coisas mudam com o passar do tempo, ontem, hoje e amanhã. Será, segundo Santo Agostinho, que existe tempo!? É preciso repensar no outro e ser mais solidário, isto é o início das transformações necessárias a um mundo melhor.

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Um terrorista sequestra 20 pessoas em um shopping e as esconde dentro de uma sala. Nesta sala os reféns encontram-se amarrados à explosivos de grande capacidade destrutiva. Os agentes policiais recebendo o chamado prontamente se dirigem ao shopping. Ao chegar ao local estabelecem contato com o terrorista, que demanda várias exigências a serem cumpridas para a liberação dos reféns vivos, entretanto em nenhum momento conseguem ver quem está ao telefone. O comandante da operação dada a situação de grande perigo decide ordenar a invasão e acaba por prender um rapaz com as mesmas características que foram apresentadas na ligação anônima denunciando o delito, entretanto não encontram os reféns. Posteriormente a captura, começam então os policiais a perguntar ao rapaz aonde estavam os reféns. Nenhuma resposta é encontrada, uma vez que o rapaz recusava a dar as informações, sob a alegação de que não era o terrorista e portanto não sabia a localização do cativeiro. O comandante diante das alegações do jovem tenta estabelecer contato com o telefone, o qual antes o terrorista vinha utilizando, mas a ligação não é atendida. Tendo em vista o prazo estabelecido pelo terrorista, a situação começa a se agravar diante da iminente explosão caso não sejam encontrados os reféns. O Comandante nesse momento se depara com um dilema moral, filosófico e legal:

Deve torturar o rapaz em busca das informações abandonando assim o respeito à dignidade humana, sobrepondo o comunitarismo em face do liberalismo, ou até mesmo praticando um ato ilegal, que resultará na salvação de muitas outras vidas? O que você faria?

Em que momento um ser humano realizou o ato mais cruel?

Qual é o pior dos sete pecados capitais?

Qual sua opinião a respeito da legalização do uso de drogas?