A sociedade atual vive o drama da “banalização da vida”, termo que pode apresentar duas acepções que monopolizam o uso da expressão. A primeira acepção vem com o conceito de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. Nela, a vida é um valor absoluto e utilizá-la como um instrumento, um meio para se alcançar fins de poder, prestígio ou gozo alheios ao seu possuidor consiste em uma violação aos direitos humanos. A segunda acepção acredita que a banalização da vida é muito mais que “instrumentalizá-la”, consiste também no fato de desatá-la dos vínculos transcendentes que garantem seu valor e sentido.
Banalizar a vida quer dizer instrumentalizá-la, mas para finalidades irrisórias, pois há casos nos quais a instrumentalização da vida para fins exteriores à pura sobrevivência é moralmente justificável. Se uma pessoa se dispõe a morrer na defesa de princípios éticos, raramente isso é visto como banalização da vida, mas ao contrário, é visto como coragem, nobreza, em suma, como um sinal de virtude.
Jurandir Freire Costa pontua que com a presente crise de transcendência, a vida perdeu o seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar, que em tempos passados atribuíam à vida um caráter absoluto, inviolável. Hoje, o sentido e o valor da vida são atribuídos pelos indivíduos por um critério pessoal, que ocasiona, muitas vezes, uma desvalorização da vida atrelada à valorização da violência.
Diariamente somos confrontados com notícias dos mais atrozes atos de violência que apontam para um total desrespeito à vida: pais que abusam sexualmente dos filhos, adolescentes assassinadas por ex-namorados, prática de tortura contra homossexuais, crianças exploradas para o trabalho infantil, presos vítimas de abuso de autoridade, mulheres estupradas, e as razões de agir de cada um são sempre peculiares. O mal parece encontrar justificativas na própria sociedade: culpam a desigualdade social, os abusos sofridos durante a infância, a má distribuição de renda, os “pré-conceitos” trazidos de geração a geração e que são incorporados pelos indivíduos que integram a sociedade. Mas muitas vezes, o mal parece mesmo ser inerente ao homem e não depender de nenhuma justificativa para a sua prática.
O filme “Laranja Mecânica” expõe essas duas formas distintas de violência, cada qual com suas origens e conseqüências. Existe a violência do indivíduo, ancestral e intrínseca no ser humano quando não reprimida pela convivência social, e existe a violência do Estado, institucionalizada, amparada pela Lei e justificada pela manutenção do status quo e controle do coletivo.
Em “O mal-estar na civilização”, de 1930, Freud sustenta que o ser humano é, na sua essência, agressivo, afirmando que, “os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”.
Essa tendência natural do homem à agressividade mútua é o grande obstáculo à civilização, tendo ela de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle. É o processo civilizatório que inibe o instinto de agressividade, através de um processo que se assemelha à domesticação de certas espécies animais.
Freud afirmava que os sonhos são uma produção psíquica que resultam de um processo de condensação e deslocamento, envolvendo a manifestação de nossos desejos. Com a Psicanálise, através do estudo dos sonhos, ele constatou que “nós próprios achamo-nos sujeitos, mais intensa e freqüentemente do que suspeitamos, à tentação de matar alguém”. Citando Frazer, Freud sustentou a tese de que a lei, como conseqüência do processo civilizatório, “apenas proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam; o que a própria natureza proíbe e pune, seria supérfluo para a lei proibir e punir. Por conseguinte, podemos sempre com segurança pressupor que os crimes proibidos pela lei são crimes que muitos homens têm uma propensão natural a cometer.”
O direito e a lei surgem, então, como instrumentos que estabelecem modelos de conduta, regras a serem respeitados. Manoel Torralbo Gimenez Júnior sustenta que para que a transição da violência ao Direito possa se efetuar, a união da maioria deve ser pautada pela estabilidade, organizando-se a comunidade para estabelecer regras e instituir autoridades para garantir o respeito a essas leis. Desse modo, Freud pondera “que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade”, não havendo como a força real ser substituída pela das idéias.
O que constatamos é que, apesar de contarmos com um extenso arcabouço jurídico, dotado de normas que visam à proteção dos bens jurídicos, e prevêem sanções àqueles que as transgridem, a violência é exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos. Diante dessa banalização da vida e da violência, a sociedade atual vem demonstrando uma necessidade de símbolos que mostrem que a vida é segura, que o sistema funciona, que o crime não compensa. Entretanto, o que se percebe é que não há perspectivas de comportamentos socialmente compensatórios e vantajosos para os indivíduos, antes pelo contrário, parece que a equação custo-benefício tem se mostrado conselheira do mal.
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